segunda-feira, abril 02, 2007

 

Temores Injustificados

Eu não sou lá muito sociável, e esqueço-me frequentemente das minhas amizades. Há quase dois anos, nesses dias encalorados de Janeiro de 1979, fui visitar um amigo que sofre de temores um tanto injustificados. O seu nome não vem ao caso: vamos supor que se chama Enrique Viani.
Num sábado de Mrço de 1977 a sua vida sofreu uma mudança assaz considerável.
Nessa manhã, na sua sala de estar, perto da porta da varanda, Enrique Viani viu, de repente, uma - segundo ele - "enorme" aranha no seu sapato direito. Ainda não tinha acabado de pensar que essa era a maior aranha que tinha visto em toda a sua vida, quando, abandonando bruscamente o sapato, o animal se introduziu calças acima.
Enrique Viani ficou - segundo disse - "petrificado". Jamais lhe havia ocorrido algo tão desagradável. Nesse momento recordou dois conceitos lidos sabe-se lá onde: 1.º) que, sem excepção, todas as aranhas, mesmo as mais pequenas, possuem veneno, e a possibilidade de o inocular, e 2.º) que as aranhas só picam quando se sentem agredidas ou incomodadas. Com toda a certeza, essa aranha descomunal teria, forçosamente, um veneno abundante e com alto grau de nocividade. Ainda que tal conceito seja erróneo, já que as mais letais costumam ser as aranhas mais pequenas - por exemplo, a tristemente célebre viúva negra -, Enrique Viani pensou que o mais sensato era ficar imóvel, dado que, ao menor estremecimento, a aranha injectar-lhe-ia uma dose definitiva de peçonha.
De maneira que permaneceu rígido durante cinco ou seis horas, com a razoável esperança de que a aranha acabaria por deixar o sítio que ocupara sobre a sua tíbia direita: pela lógica, não poderia permanecer demasiado tempo num lugar onde não tivesse comida.
Ao formular esta previsão optimista, sentiu que, com efeito, a visitante se movimentava. Era uma aranha tão volumosa e pesada, que Enrique Viani pôde perceber - e contar - a progressão das oito patas - peludas e um pouco viscosas - sobre a eriçada pele da sua perna. Mas, por desgraça, a hóspede não se ia embora: pelo contrário, instalou o seu ninho, mole e palpitante de cefalotórax e abdómen, naquela concavidade atrás do joelho.
Esta é a primeira - e, certamente, fundamental - parte desta história. Seguiram-se depois variantes pouco significativas: o cerne da questão era que Enrique Viani, temendo ser picado, teimava ficar estático o tempo que fosse preciso, apesar das exortações em contrário que lhe dirigiram a mulher e as suas duas filhas. Chegaram, deste modo, a um impasse, para além do qual nenhum progresso foi possível.
Então, Gabriela - a esposa - decidiu dar-me a honra de me chamar para ver se eu podia resolver o problema. Seriam duas da tarde: sacrificar a minha única sesta semanal causou um certo aborrecimento e lancei diatribes silenciosas contra as pessoas que não são capazes de se desembaraçarem sozinhas. Na casa de Enrique Viani deparei-me com uma cena patética: ele estava imóvel, ainda que numa postura não excessivamente forçada, parecida com o descanso na instrução militar; Gabriela e as meninas choravam.
Consegui manter a calma e procurei infundí-la nas três mulheres. Disse a Enrique Viani que, caso ele aprovasse o meu plano, num abrir e fechar de olhos poderia derrotar com toda a facilidade a aranha invasora. Abrindo muito pouco a boca, para evitar transmitir o mínimo movimento muscular à perna, Enrique Viani murmurou:
_ Que plano?
Expliquei-lhe. Com uma lâmina de barbear, cortaria verticalmente, de baixo para cima, a perna direita das calças, até expor a aranha, sem sequer lhe tocar. Uma vez realizada esta operação, ser-me-ia fácil, mediante um golpe com um jornal enrolado, fazê-la cair no chão e, aí, matá-la ou capturá-la.
_ Não, não - sussurrou Enrique Viani num desespero contido. - O tecido das calças vai tremer, e a aranha vai picar-me. Não, não: esse plano não vale nada.
Não tenho paciência para gente teimosa. Com toda a modéstia, afirmo que o meu plano era perfeito, e aquele infeliz, que me tinha feito perder a sesta, dava-se ao luxo de o rejeitar: sem argumentos sérios e, ainda por cima, com um certo desdém.
_ Então, não sei que diabo vamos fazer - disse Gabriela - E logo hoje que festejamos os quinze anos de Patrícia.
_ Parabéns - disse, e beijei a aniversariante.
... E os convidados não podem ver o Enrique assim, como se fosse uma estátua.
_ Além disso, o que dirá o Alejandro.
_ Quem é o Alejandro?
_ O meu namorado - respondeu, previsivelmente, Patrícia.
_ Tenho uma ideia! - exclamou Cláudia, a mais pequena - chamamos dom Nicola e...
Que fique claro que o plano de Cláudia não me deslumbrou e, por isso, não cabe qualquer responsabilidade na sua execução. Aliás: opus-me a ele com energia. No entanto, foi calorosamente aprovado, e Enrique Viani foi mesmo o que se mostrou mais entusiasmado.
De maneira que apareceu dom Nicola e, de imediato, pois era um homem de escassas palavras e de muita acção, pôs as mãos à obra. Rapidamente preparou argamassa e, tijolo sobre tijolo, erigiu em torno de Enrique Viani um cilindro alto e delgado. A estreiteza do habitáculo, longe de ser uma desvantagem, permitia a Enrique Viani dormir de pé, sem medo de quedas que lhe fizessem perder a posição vertical. Após rebocar profusamente a construção, don Nicola aplicou-lhe uma massa regularizadora e pintou-a de verde musgo, para que se harmonizasse com as almofadas e os cadeirões.
No entanto, Gabriela - pouco satisfeita com o efeito geral que esse micro-obelisco produzia na sala - colocou-lhe em cima uma jarra com flores e, de seguida, um candeeiro com arabescos. Hesitante, disse:
_ Para já fica essa porcaria. Na segunda-feira compro uma coisa decente.
Para que Enrique Viani não se sentisse tão só, pensei introduzir-me na festa de Patrícia, mas perspectiva de enfrentar a música de que gostam os nossos jovens amedrontou-me. De qualquer maneira, dom Nicola tinha tido a precaução de fazer uma diminuta janela rectangular em frente aos olhos de Enrique Viani, que assim poderia divertir-se contemplando certas irregularidades visíveis na pintura da parede. Vendo, pois, que tudo estava dentro da normalidade, despedi-me dos Viani e de dom Nicola e regressei a casa.

Em Buenos Aires e nesta época, encontramo-nos todos inundados de tarefas e compromissos: a verdade é que me esqueci quase por completo de Enrique Viani. Por fim, vai fazer quinze dias, tive um tempinho livre e fui visitá-lo.
Descobri que ainda habita o seu pequeno obelisco, com a novidade de, em torno deste, uma esplêndida trepadeira de campânulas azuis ter criado ramos e folhas. Apartei um pouco a exuberante folhagem e consegui ver através da janelinha um rosto quase transparente de tão pálido. Antecipando-se à pergunta que eu tinha na ponta da língua, Gabriela informou-me que, por uma espécie de sábia adequação às novas circunstâncias, a natureza tinha eximido Enrique Viani de necessidades fisiológicas de toda a índole.
Não quis retirar-me sem tentar uma última exortação à sensatez. pedi a Enrique Viani que fosse razoável; que, depois de vinte e dois meses de clausura, certamente a famosa aranha já teria morrido; que, por consequência, poderíamos destruir a obra de dom Nicola e...
Enrique Viani perdeu a fala ou, seja como for, a sua voz não se percebe: limitou-se a negar desesperadamente com os olhos.
Cansado, e talvez um pouco triste, retirei-me.

Em geral, não penso em Enrique Viani. Mas, nos últimos tempos, recordei duas ou três vezes a sua situação, e acendeu-se em mim uma ponta de inconformismo: ah, se esses temores injustificados não fossem tão poderosos, haviam de ver como, a golpes de picareta, destruía essa ridícula construção de dom Nicola; haviam de ver como, perante a eloquência dos factos, Enrique Viani acabaria por convencer-se de que os seus temores são infundados.
Mas, se depois destes ímpetos, prevalece o respeito pelo próximo, e dou-me conta de que não tenho o direito de me intrometer na vida alheia e despojar Enrique Viani de um benefício que ele tanto aprecia.

Fernando Sorrentino, in Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça

Ver www.ovni.org

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